Mia Couto: “O professor tem que ser um contador de histórias”

12:36:00Rio de Leitura

Fonte: novaescola.org.br, acessado em 26 de maio de 2018.


          O escritor moçambicano Mia Couto é um dos maiores representantes do continente africano, sobretudo nos países de língua portuguesa. 

         No Brasil para lançar a última obra de uma trilogia em que fala sobre um dos mais emblemáticos episódios da história de seu país, a queda do imperador Gungunhane, o autor concedeu entrevista a NOVA ESCOLA, em que comentou sobre a própria experiência escolar – e um professor que marcou sua vida –, sua relação com a gramática e arriscou uma sugestão: é preciso que haja mais espaço para a imaginação.

Como foi sua experiência escolar?

MIA COUTO: Eu era um aluno sofrível, eu tirava a nota que bastava para passar. A escola não me seduzia, não me encantava. O que eu aprendi nela foi que faz falta esse lugar de sedução. A escola, para mim, era um lugar onde eu aprendia a não estar onde eu estava. Era uma espécie de exercício de exílio. Eu ficava junto a uma janela para ver o mundo e a vida, porque me parecia que a escola era muito cinzenta e pouco divertida.

Em algum momento, a escola seduziu você?

COUTO Eu sempre conto essa mesma história. Foi de um professor que não deu uma aula, e sim uma lição – que é uma coisa diferente. Ele nos mandou fazer uma redação que seria apresentada à turma. No dia seguinte, como se fosse um aluno, ele trouxe um caderno e sentou-se em uma das nossas cadeiras. Ele era um homem enorme, muito grande. Ficou ali todo desajeitado. Converteu-se num menino, como nós, numa criança – e com as mãos tremendo, leu a redação que tinha feito em casa, à noite, como se fosse um de nós. O texto dele chamava-se ‘As Mãos da Minha Mãe’. E as mãos da mãe dele também eram as mãos da minha mãe: ele falava de mãos marcadas pelo trabalho, pelo sofrimento, pela vida e como ele gostava daquelas mãos marcadas. Eu tinha talvez uns 9 ou 10 anos, mas nunca me esqueci disso. Esse foi o momento em que eu pensei que a escola fazia algum sentido.

Como esse episódio se reflete na sua carreira como escritor?

COUTO Aquilo deixou uma grande impressão por duas razões: a primeira é que percebi que o que eu via como um texto obrigatório era sem sabor nenhum. Simplesmente porque tinha que estar atento à ortografia e normas da gramática. Eu notei que o prazer que tinha ao escrever uma história é o de viver no texto o que está dentro do nosso peito. A segunda razão é que aquele professor, de repente desamparado na cadeira, transformou-se num colega meu. Não é só uma questão curricular, uma questão de programa. É uma questão de atitude do professor.

No Brasil, muitos professores se perguntam como despertar o prazer pela leitura. Como isso é possível?

COUTO Falta ler histórias na escola. A aprendizagem da Língua Portuguesa e daquilo que deve ser o gosto pela leitura tem que ser pensado para que a ligação com o livro chegue ao aluno não apenas como uma fonte de saber, mas como fonte de recolha de prazer absoluto. O professor tem de ser um contador de histórias. Eu fiz isso, agora já adulto, como escritor. Eu contava uma história, que estava dentro de um livro, uma história que fosse muito interessante, que fosse realmente instigadora. Depois de fazermos daquilo um objeto de brincadeira, de brincar com o texto, eu apresentava o livro. Há uma separação do aprender com o brincar. Quando toca a sineta e o professor diz: “Agora é o recreio, é o momento de brincar”. Ou: “A brincadeira ficou lá fora, agora cá dentro da sala é outra coisa”. Essa separação é muito pouco pedagógica porque os meninos aprendem brincando.

Como você se sente a respeito de ter sua obra lida nas escolas?

COUTO É claro que eu tenho um certo orgulho de que meus textos possam servir às escolas, mas meu receio é justamente esse de servir. A literatura não tem uma função no sentido de ser um material escolar. 

Você também pode gostar de

0 comentários

Postagens mais visitadas

Imagens Flickr

Formulário de contato